Por Erika Pallottino
Ao receber o convite para escrever para essa coluna sobre depressão na Medicina Veterinária, lembrei de pronto de uma citação simples, porém verdadeira, do célebre romance “Adeus às Armas”, do escritor norte-americano Ernest Hemingway: “Você é tão valente e silencioso que esqueço que você está sofrendo.”
A associação entre Hemingway, Medicina Veterinária e depressão veio à tona por meio de algumas reflexões. O médico-veterinário vem adoecendo emocionalmente pela sobrecarga de trabalho? Pela insuportabilidade do trabalho que realiza, às vezes sem sentido? Por que não é cuidado ou não se cuida como deveria? Por que idealizou uma profissão e a realidade se mostrou terrivelmente dolorosa? Afinal, por qual motivo cada vez mais médicos-veterinários se afastam do trabalho (ou da vida!) por algum tipo de disfuncionalidade significativa?
O nome da coluna, Sobre(o)Viver, já anuncia para a categoria que o conteúdo pretende ajudar a saúde mental dos profissionais. Os índices de suicídio, afastamento de trabalho, absenteísmo, aumento do uso de álcool e tabaco, entre outros fatores de risco para a saúde, são alarmantes e crescem a cada dia. O silêncio de muitos profissionais, arrisco-me a dizer, também aumenta. Como parece ser ainda difícil falar sobre esse mal-estar!
A ideia de se falar mais abertamente sobre o tema é tentar desmistificar o preconceito que envolve o adoecimento emocional. A síndrome de Burnout, tão discutida em Simpósios e Congressos Científicos, não consegue, em toda a rebuscada teorização que vem sendo tratada, dimensionar a devastação de quem a vive na prática. O profissional se vê sem reservas funcionais, sem nada para oferecer, sem nada para sentir. De um todo idealizado, acadêmico, estudante que encontra sentido na profissão, se vai ao esgarçamento vital. Não há mais significado, planos, esperança, vitalidade. Há um sobreviver fadigado, arrastado, solitário e, muitas vezes, impossível de sustentar. Daí vem as alarmantes estatísticas a respeito do suicídio na Medicina Veterinária.
Mas o que se perdeu no meio do caminho entre o acadêmico e o profissional? O que estilhaçou a possibilidade de seguir acreditando na relação com afeto, com empatia, da qual é parte integrante, seja com o animal, com o tutor ou com a equipe em que trabalha? Como as intensas angústias e ansiedades passaram a ser parte integrante do cotidiano? Como ninguém viu o que estava acontecendo e intercedeu? Como não foi possível falar e pedir ajuda?
Como psicóloga clínica, especialista em luto, dedico grande parte da minha prática profissional a cuidar de pessoas em sofrimento. Muitas conseguem nomear suas dores e medos, conseguem pedir e aceitar a ajuda que chega. Entendem que a dor solitária é como um grito sem eco, sem reverberação, apenas diante do nada. A dor compartilhada é reduzida. Se não gritamos por socorro, ninguém vem ao nosso encontro. Não há amparo e suporte, apenas colapso e mais dor. E quando a dor não cessa, a vida paralisa.
É um tipo de luto perder aquilo que escolhemos e que nos preparamos para viver. Parte do sentido das nossas vidas tem a ver com a escolha profissional que fizemos, dos planos que sonhamos, dos lugares em que desejamos estar. A profissão pode nos levar a voos altos, alargar o nosso senso de capacidade, nos apropriar de nós mesmos. Ter profissão é crescer, é amadurecer, é saber viver. Em contrapartida, não encontrar mais sentido neste fazer é perder-se um pouco de si, das referências, da trajetória investida. Essa dor precisa de cuidados, especializados e específicos. Não há valentia em suportá-la, não existe silêncio que consiga tamponar quando a dor teimar em gritar. O caminho precisa ser o do autocuidado e da busca por ajuda.
Afinal, Sobre(o)Viver é sobre estar na vida com os desafios que a nossa lide diária nos propõe, é sobre dar conta das intempéries com os recursos emocionais adequados, é sobre reconhecer os nossos limites éticos, é sobre conseguir cuidar melhor daqueles que nos procuram porque sabemos cuidar melhor de nós mesmos.
Erika Pallottino – Psicóloga clínica, sócia-fundadora do Instituto Entrelaços; coordenadora do Ambulatório de Intervenções e Suporte ao Luto; coordenadora da pós-graduação em Psico-oncologia e do curso de extensão em Tanatologia, ambos pela PUC-Rio; professora do Instituto Paliar; certificada no Level 2 em Complicated Grief pela Columbia University School of Social Work – NY. Tem aprimoramento em Famílias enfrentam crises: Psicoterapia com base na Teoria do Apego pelo 4 Estações Instituto de Psicologia; tem treinamento em Situações de Emergências pós-desastres. É mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Rio; especialista em Psicologia Médica pela Faculdade de Ciências Médicas da UERJ e especialista em Psicologia Oncológica pelo INCA. Também é facilitadora do Projeto Sobre(o)Viver do CRMV-RJ.